A denúncia como expressão

out 1, 2019 | Artigos

Muitas são as motivações que levam uma pessoa e/ou um grupo a fazer uma denúncia. Esse fenômeno é sempre uma expressão social de algo que incomoda um indivíduo e/ou um grupo, e costuma dar conta de uma primeira necessidade de escape. O indivíduo e/ou o grupo indica(m), por meio dessa expressão, um incômodo em relação a algo que diz respeito aos juízos que estão direcionando as subjetividades e/ou as configurações grupais.A denúncia é uma ação que traz à superfície algo que estava oculto ou sendo ocultado. É importante observar, no entanto, que o que estava submerso nem sempre é algo obscuro ou negativo; pode ser algo luminoso e positivo que foi nominado pela denúncia. O incômodo que mencionamos anteriormente não necessariamente é acionado pelo conteúdo da denúncia, pode surgir também pelo fato de algo estar oculto. Para exemplificar, vamos imaginar primeiro um grupo em que um dos membros denuncia que outras pessoas não contribuem com as tarefas coletivas. Neste caso, o incômodo central parte do conteúdo, ou seja, do fato de algumas pessoas não estarem contribuindo. Agora, em outro caso, vamos imaginar que um membro denuncia o fato de alguns membros estarem fazendo um belo trabalho e que, por isso, precisam de reconhecimento. Neste segundo caso, a falta de reconhecimento é o incômodo, não o trabalho que está sendo realizado, ou seja, a centralidade dessa denúncia é o evidenciar (o não reconhecer) e não o que será evidenciado (o trabalho bem feito). Com base nessa distinção, podemos dizer que o primeiro caso traz uma “denunciação” e, o segundo, uma “denúncia declaratória”. Estamos denominando a “denunciação” uma expressão que traz à tona uma percepção de algo que tem como foco o conteúdo da denúncia, pois a motivação do denunciante tem como ênfase a necessidade de resolução ou tratamento de algo; já na denúncia declaratória o foco da motivação é a própria evidenciação da denúncia. A linha que distingue as duas qualidades de denúncia é fina e porosa, ou seja, elas não são isoladas uma da outra, mas o traço mais característico de cada uma delas é a ênfase dada, ou seja, a centralidade da necessidade e da intencionalidade de cada tipo de denúncia.

Além do incômodo como motivação primária, existem outras diversas motivações para que uma denúncia seja feita. O que há em comum entre a denunciação e a denúncia declaratória é a motivação da necessidade de expressão do denunciante, que pode ser representado por um indivíduo e/ou o coletivo. É neste ponto que o denunciante pode se equivocar e utilizar a denúncia somente para sanar uma necessidade de expressão, sem se dar conta de que não está realizando uma “denúncia efetiva”, está apenas apontando por meio de sua expressão sua própria necessidade de reconhecimento. Então, o que é uma denúncia efetiva e quem é capaz de distingui-la? Este é um ponto altamente polêmico e delicado, pois é difícil objetivar algo que se apresenta com alto grau de subjetividade, uma vez que o único agente que realmente pode mensurar de forma categórica a denúncia como efetiva ou não é o denunciante. Além disso, o receptor da denúncia somente poderá validá-la como pertinente ou não em relação ao contexto, mas não poderá afirmar categoricamente se é efetiva ou não, já que o indivíduo é o único capaz de tomar consciência das intenções motrizes de suas expressões.

Uma terceira distinção que se faz presente no espectro da denúncia é o que denominamos com o neologismo “denuncismo”. Com “denuncismo” queremos nos referir a uma espécie de generalização em que a expressão de incômodos é o foco mesmo quando esse incômodo não está relacionado com a denúncia. Trata-se de um tipo de padrão e dinâmica que se estabelece quando o indivíduo e/ou grupo não tem repertório para se expressar de outra forma ou não tem confiança para isso.

A denúncia como expressão

A denúncia muitas vezes é vista como lugar de coragem, e realmente pode ser, pois nem sempre é fácil trazer o oculto à luz. Em alguns casos, o(s) membro(s) podem se insurgir por meio dessa expressão divergindo e se opondo ao que muitos não querem ver/reconhecer, ou ainda se levantar contra algum tipo de opressão. Contudo, é importante notar que, por valorarmos a denúncia como uma atitude de coragem, membros que carecem de repertório linguístico e dialógico ou que apresentam fragilidade emocional utilizam a estrutura da denúncia para se expressarem a partir de um lugar seguro e, de certa forma, blindarem as oposições, instaurando o “denuncismo”. Podemos dizer que, além da expressão do incômodo sem lugar, o “denuncismo” é a expressão da falta, seja uma falta interna, do ponto de vista individual, como mencionado anteriormente, seja externa, do ponto de vista das faltas de condições contextuais que muitas vezes as dinâmicas relacionais impõem aos indivíduos.

De qualquer forma, o “denuncismo” é uma prática que vem obstruindo os diálogos. Isso porque, por ser demasiadamente genérica, essa prática dificulta a discussão produtiva sobre o mérito da questão. Por exemplo, quando um indivíduo denuncia em um grupo que há pessoas que não ajudam nas tarefas coletivas, que as pessoas deviam ser mais colaborativas e que outras pessoas estão sobrecarregadas – porém, não consegue dizer quais pessoas, quais tarefas e como seria uma forma mais colaborativa. Outro caso é quando a denúncia se refere a ações não nomeadas que não estão sendo realizadas, por exemplo, “temos questões importantes a serem discutidas nesse grupo que não estamos fazendo” (quais questões?); ou ainda quando remete a uma temática, como “o problema desse grupo é a comunicação” (comunicação para quê? entre quem, especificamente? em que momento ou processo? etc.)

Nas plataformas e redes sociais virtuais, o “denuncismo” aparece com frequência e talvez de forma mais intensa. Ele é expresso, por exemplo, nas famosas indiretas, como “vocês que falam besteiras sobre política, deveriam estudar mais”. Podemos pontuar essa indireta com várias perguntas: quem são vocês? a que besteiras essa declaração se refere? o que, especificamente, de política está equivocado? é necessário estudar mais o quê (tema, assunto, referência etc.)?

Além disso, que diálogo é possível a partir dessa denúncia além do famoso e habitual concordo ou discordo? Resposta dada, ainda assim, com base na subjetividade de quem lê e consegue enquadrar (ou não) possíveis pessoas que “falam besteiras sobre política” e que “precisam estudar mais”.

O padrão e dinâmica do denuncismo vai afastando a possibilidade de avanço reflexivos e práticos nas questões, pois fazem emergir falsas questões à medida que a intencionalidade da denúncia não diz respeito ao seu conteúdo, ou diz respeito a uma falsa disposição ao enfrentamento das questões e de seus protagonistas. Enquanto a denunciação (que tem como foco a declaração a partir de um incômodo em relação ao conteúdo) e a denúncia declaratória (cujo foco é a evidenciação de algo que estava oculto) são expressões de potenciais diálogos produtivos, o denuncismo é um mecanismo que tem como foco a falta, pois é produzido por ela e a produz como dinâmica, além de ser disparador de violências, pois tudo que impossibilita o diálogo gera aridez e desamor.

Como você anda expressando suas denúncias?

 

por Paulo Henrique Corniani
É sociólogo, pós-graduado em dinâmica dos grupos e coach ontológico. Sócio do Appana Território de Aprendizagem. Um homem latino americano buscando entender as coisas.

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