Por que se fala tanto de humanização hoje?

jul 30, 2019 | Artigos

Humanização é um termo atual nos discursos sobre trabalho. Defendemos um trabalho humanizado, por meio de relações, ambiente e formas de trabalhar mais humanizadas. Afinal, do que estamos falando quando usamos esse termo? O que é essa capacidade de tornar algo humano ou de oferecer condições humanas aos ambientes de trabalho? Por que estamos precisando tanto defender a humanização se somos humanos? Se existe algo sobre o que não precisaríamos falar é sobre humanizar. Como afirma Maturana:

Para entender o ser vivo, o que temos que encarar é o que faz, o que constrói. Eu dizia: “Qual é a tarefa, ou o propósito da mosca?” Mosquear, ser mosca. O interessante é que esta resposta coloca a caracterização do ser vivo no ser vivo, não a coloca fora. Porque esse “mosquear” não é mosquear aos outros, é mosquear, ser mosca. Estar na dinâmica de ser mosca. E o gato? Gatejar, gatinhar. E o ser humano? Ser humano.  (Maturana, 1999, p. 41).

Fato é que ser humano implica mais do que simplesmente ser, implica refletir sobre o que se é e o que se faz. A reflexão sobre o nosso fazer tem sido pouco valorizada em nossa sociedade. Vivemos numa sociedade acelerada que preza por sujeitos de desempenho, como bem descreve o filósofo coreano Byung-Chul Han em A sociedade do cansaço. Duas forças pressionam o sujeito ao alto desempenho: a exigência externa, que exige e avalia a performance dos colaboradores nas empresas, e a exigência interna, enquanto construção da subjetividade de sujeitos que desejam performar. Nesse campo de batalha, há pouco espaço para o pensar, a reflexão e a contemplação, relegadas a atividades menores, de “desocupados”. Contudo, é justamente o pensar algo tipicamente humano, um caminho, portanto, para a desejada humanização.

Entendemos os seres humanos como seres linguísticos, que, portanto, constroem o mundo a partir da linguagem. Por isso, não poderíamos deixar de observar também a linguagem do trabalho a fim de entrever o mundo que estamos conservando e criando na prática, para além dos discursos. Começamos pelo exercício de observar a bagagem etimológica da palavra “trabalho”: do latim tripalium, uma recurso de tortura usado contra os escravos, reforçada por uma longa tradição que associa trabalho a castigo e punição – ou seja, uma atividade braçal realizada por seres considerados menos importantes na sociedade da época (ou “não humanos”). Por outro lado, a atividade laboral é uma das características principais do humano: dentre os seres vivos, apenas os humanos são capazes de dar sentido a um fazer. Contraditoriamente, conservamos a palavra com a bagagem da tortura e adicionamos o predicado “humanizado”, talvez buscando resgatar a ideia primordial de um trabalho com sentido.

O que costumamos colocar em oposição à humanização é a automatização: um fazer repetitivo, que carece de sentido e poderia ser substituído por uma máquina, um robô. Mais uma vez, observamos o uso controverso que fazemos da linguagem: para falar sobre futuro do trabalho, encontramos expressões como Humano 2.0, Indústria 4.0, Fábrica inteligente, Sistemas Técnicos Inteligentes, Acompanhamento da Jornada do Cliente etc. Ou seja, estamos desejosos de humanização, mas a linguagem do trabalho cada vez mais valoriza o trabalho que não é tipicamente humano. Inteligência artificial, automação robótica e simulação 3D promovem ganho de escala e, portanto, performam acima da média dos humanos – que deixam de ser torturados fisicamente pelo trabalho e passam a ser torturados psicológica e emocionalmente por ele:

Assim, o sujeito do desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho. O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. Essa é mais eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. […] Os adoecimentos psíquicos da sociedade de desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal.” (HAN, 2017, p. 29-30)

Parece que a evolução humana se afasta cada vez mais o que é essencialmente humano: a reflexão sobre o fazer. Como incluir a possibilidade dessa reflexão para que possamos ter um fazer ampliado? Se entendemos a cultura, conforme Maturana, como “uma rede de conversações que se conserva”, podemos olhar para o ser humano como um ser social. Nesse sentido, a humanidade só se manifesta a partir da cultura. Retomamos o fato de que os seres humanos são seres linguísticos, ou seja, não podemos prescindir da linguagem. O que é tipicamente humano é justamente o uso dela: o conversar, o expressar-se ao outro. Chamamos de cultura a essa linguagem que faz as costuras das relações. Refletindo sobre o contexto do trabalho, a linguagem está na base de todas as relações, fazeres, acordos, formas de atendimento, entrega, etc, inclusive os processos. É importante lembrar que processos também são linguagem e devem estar a serviço das pessoas, não o contrário. O trabalho pode ser desumano quando os processos não prevêem as pessoas que os operam e, nesse sentido, é a linguagem processual que está desumanizada.

Será que estamos sendo coerentes na forma e conteúdo do trabalho? Se a linguagem constrói e expressa a nossa humanidade, o quanto é que temos tornado as nossas palavras uma trivialização do que é humano? O quanto temos verdadeiramente praticado de humano no trabalho ou só nos apegado à moda do discurso da humanização?

Precisamos nos debruçar sobre essas provocações para pensar caminhos possíveis. Aparentemente, são questões fáceis e binárias, mas não são passíveis de reação com respostas simples e sem lastro com as realidades. Faz-se necessário agir no sentido de reconhecer o humano como um verdadeiro construtor da realidade concreta a partir de seus próprios pensamentos.

A premissa da realização laboral humana é um fazer refletido, é a confluência entre pensamento e ação; dar luz e significado a essa especificidade é recriar os sentidos do trabalho como uma atividade fundamentalmente humana, em que o humano é o centro de sua produção e não ao contrário.

Referências
HAN, B-C. Sociedade do cansaço. Trad. Enio Paulo Giachini. 2. ed. ampliada. Petrópolis: Vozes, 2017
MATURANA, H.; MAGRO, C. (Org.) A ontologia da realidade. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

Káritas Ribas
Pesquisadora em Complexidade, Mestre em Biologia-Cultural, Filósofa,
Psicanalista e Coach com Formação Ontológica – PCC pelo ICF. Sócia-fundadora do Appana Território de Aprendizagem.

Paulo Henrique Corniani
É sociólogo, pós-graduado em dinâmica dos grupos e coach ontológico. Sócio do Appana Território de Aprendizagem. Um homem latino americano buscando entender as coisas.

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